
Evans Osei Wusu, de 39 anos, fazia parte de grupo que estava retido no aeroporto, em Guarulhos, à espera de refúgio. Ele enfrentou dificuldades para conseguir auxílio, segundo a família, e morreu em agosto de 2024. Depoimento à polícia mencionou que ganês avisou sobre dores e não recebeu ajuda imediata. Evans Wusu enquanto estava retido no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos
Arquivo Pessoal
A Defensoria Pública da União (DPU) entrou nesta segunda-feira (19) com uma ação civil pública contra a União e a companhia aérea Latam pedindo indenizações que totalizam R$ 10 milhões pela morte do imigrante Evans Osei Wusu, de 39 anos, na área restrita do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, e tratamento desumano de estrangeiros inadmitidos no mesmo espaço.
Em setembro de 2024, o g1 revelou a história de Evans. Segundo a família, ele chegou a pedir ajuda médica diversas vezes em agosto do ano passado, mas enfrentou dificuldades para ser atendido enquanto aguardava a análise de seu pedido de refúgio no Brasil.
Evans foi levado ao Hospital Geral de Guarulhos e morreu dois dias após a internação, em 13 de agosto. A certidão de óbito indicou que ele morreu em decorrência de uma infecção generalizada causada por infecção urinária (leia mais abaixo).
Em entrevista ao g1, o defensor regional de Direitos Humanos de São Paulo, Murillo Ribeiro Martins, explicou que a ação busca responsabilizar tanto a União quanto a companhia aérea pelos fatos que levaram à morte de Evans e pela situação de outros migrantes retidos.
“A petição, que também é assinada pelo Grupos de Trabalho Migração, Apatridia e Refúgio, através de Ed William Fuloni, e Políticas Etnorraciais, por Natalia Von Rondow, aborda, além dos fatos relacionados à morte de Evans, toda a problemática prévia ao que aconteceu com ele e a própria questão do racismo estrutural que enxergamos estar presente neste caso”, diz.
Segundo ele, o objetivo é garantir reparação à família e proteção aos migrantes, por meio de indenizações e de um plano de acolhimento para evitar novas tragédias como a de Evans.
“Estamos buscando a responsabilização pelo que ocorreu com Evans, tanto a reparação da família, com pagamento de indenização por danos morais e materiais, como para a coletividade de migrantes inadmitidos, com pagamento de indenização coletiva e adoção de plano de acolhimento para evitar que situações como a que aconteceu se repita”, complementa.
Conforme o defensor, na petição consta que, a partir da investigação conduzida pela DPU, “se identificou que os migrantes foram e são submetidos a situação degradante e que, no caso de Evans, resultou no extremo, que foi sua morte”.
Com isso, a ação cobra a responsabilização da União e da Latam por violação de direitos humanos, omissão de socorro, negligência e tratamento degradante aos migrantes inadmitidos.
Os pedidos incluem:
Danos morais individuais e danos por perda de uma chance: R$ 1,5 milhão pelos danos sofridos diretamente por Evans antes da morte e por ele ter tido uma chance de sobreviver caso tivesse recebido o atendimento médico no momento certo; e R$ 500 mil para cada familiar direto (irmã, sobrinhos e parentes afetivos), por sofrimento moral após o óbito.
Danos materiais: valor a ser calculado, incluindo translado do corpo até Gana (não realizado); funeral, luto e despesas com a morte, além da pensão aos sobrinhos sustentados por Evans.
Danos morais coletivos: R$ 2 milhões pela situação degradante vivida por centenas de migrantes retidos nas mesmas condições em Guarulhos, incluindo crianças, gestantes e idosos.
Como se trata de um pedido de indenização em caráter solidário, todos os responsáveis indicados são obrigados a responder juntos pela reparação dos danos causados e não há, neste momento, uma divisão sobre valores.
“A conclusão pela responsabilidade da União é tanto pela ausência de assistência aos migrantes retidos, e que estão nessa situação por conta de conduta da própria União, enquanto se aguarda o processamento da solicitação de refúgio, como pela demora no processamento da solicitação de refúgio, que fez com que ele ficasse muito tempo na área restrita”, ressalta o defensor Murillo.
“Já da Latam é também pela falta de assistência, tanto no momento em que estava área restrita, como depois do falecimento, com a sonegação de informação ao hospital, resultando no enterro de Evans sem que a família soubesse”, finaliza.
Em nota, a Latam informou que não foi notificada e não comentará o assunto.
Em nome da União, o Ministério da Justiça encaminhou nota em que afirma que, no caso de Evans, “não cabia à Senajus [Secretaria Nacional da Justiça] o acompanhamento da assistência específica ao migrante de Gana. A Senajus não foi comunicada sobre a situação do viajante. A comunicação à Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, aconteceu no dia 16 de agosto, após o falecimento do migrante de Gana”.
E completou: “Segundo as informações repassadas ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, o migrante foi atendido pelo posto médico do Aeroporto de Guarulhos, por problemas de saúde, no dia 11 de agosto de 2024. Na mesma data, ele foi transferido ao Hospital Geral de Guarulhos —onde faleceu no dia 13” (veja a íntegra mais abaixo).
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O que diz o governo federal
“Uma série de órgãos têm responsabilidade pelos migrantes que estão naquela área de trânsito restrito do Aeroporto de Guarulhos. Em 2015, foi assinado um o Termo de Cooperação Técnico-Institucional para Proteção e Promoção de Soluções Humanitárias e Solidárias em Situações de Migrantes Inadmitidos no Aeroporto Internacional de Guarulhos.
Participam desse grupo de trabalho o Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC); Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ); Defensoria Pública da União (DPU); Município de Guarulhos, por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Assistência Social e de seu Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante (Posto); e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados.
Um termo aditivo foi assinado em 14 de fevereiro de 2023, prorrogando a cooperação entre esses órgãos, além do plano de trabalho, onde estão definidas as competências de cada instituição.
O plano estabelece, por exemplo, que o Departamento de Migrações e a Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, ‘possui a atribuição, dentre outras, de processar pedidos que concernem nacionalidade e naturalização, entrada e permanência e determinação do status de refugiado’.
‘Deve, ainda, fornecer programas de treinamento e organizar cursos, workshops e seminários sobre o atendimento de refugiados, apátridas e vítimas de tráfico de pessoas com o objetivo de aprimorar a atuação do próprio órgão e de empresas que realizam atividades no aeroporto de Guarulhos.’
Ainda de acordo com o plano de trabalho, a Secretaria Nacional de Justiça ‘tem por atribuição conduzir procedimentos de determinação do status de refugiado e decidir acerca do cancelamento ou perda, em primeira instância, da condição de refugiado; fornecer diretrizes e coordenar as ações necessárias para a eficiência da proteção e assistência a solicitantes de refúgio e refugiados; aprovar regulamentações que esclareçam a aplicação da Lei 9.474/1997′.
O plano de trabalho também diz, por exemplo, que a Defensoria Pública da União é instituição permanente que presta assistência legal, judicial e extrajudicial, em todos os níveis, de modo abrangente e gratuito a todos aqueles que demonstram hipossuficiência material para defender seus direitos reconhecidos em lei. Nesse sentido e nos termos do TICT, a DPU deve realizar visitas periódicas e fornecer assistência jurídica gratuita, sempre que necessário, a todos os migrantes inadmitidos retidos em área restrita do Aeroporto de Guarulhos, garantindo a proteção legal e a defesa de seus direitos.
No caso específico, portanto, não cabia à Senajus o acompanhamento da assistência específica ao migrante de Gana. A Senajus não foi comunicada sobre a situação do viajante.
A comunicação à Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, aconteceu no dia 16 de agosto, após o falecimento do migrante de Gana.
Segundo as informações repassadas ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, o migrante foi atendido pelo posto médico do Aeroporto de Guarulhos, por problemas de saúde, no dia 11 de agosto de 2024. Na mesma data, ele foi transferido ao Hospital Geral de Guarulhos —onde faleceu no dia 13.
Imediatamente, o Ministério da Justiça e Segurança Pública enviou ofício ao Ministério das Relações Exteriores solicitando que providências fossem tomadas para a comunicação da situação à Embaixada de Gana —o que, de fato, foi feito pelo Itamaraty.’
Depoimento menciona falta de ajuda imediata
Evans Osei Wusu, de 39 anos, fazia parte do grupo que estava retido no Aeroporto Internacional de SP
Arquivo Pessoal
A Polícia Civil instaurou inquérito em 6 de setembro para investigar a morte de Evans. O relatório final da Delegacia de Atendimento ao Turista (Deatur) foi concluído em 1º de outubro de 2024 e encaminhado ao Ministério Público no dia seguinte.
O MP, porém, pediu novas diligências e devolveu o inquérito à Polícia Civil.
Segundo o g1 apurou, uma das cinco pessoas intimadas para prestar depoimento à Polícia Civil é da seção técnica do posto Avançado de Atendimento Humanizado aos Migrantes.
Ela relatou que não apurou o caso da morte do imigrante no local do fato, mas soube que Evans, ao chegar ao território brasileiro, se queixou de sequelas decorrentes de processo de tortura no país de origem, como dores lombares com necessidade de cirurgia, dificuldade de locomoção, fazendo uso de bengala e, por algumas vezes, cadeira de rodas, além de incontinência urinária com necessidade de uso de fralda geriátrica.
O depoimento menciona também que, diante dos relatos do imigrante à equipe do Posto Avançado de Atendimento Humanizado, em 7 de agosto foi feita a solicitação de refúgio.
Ela ainda relatou, conforme o g1 apurou, que em 9 de agosto foi feita uma reiteração das queixas do passageiro por sua permanência prolongada no local ao Ministério Público Federal e ao plantão da Polícia Federal.
O depoimento menciona que, mesmo com a comunicação, não teve retorno sobre o fato. A funcionária ainda ressalta que soube da morte de Evans pela imprensa.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) informou que “o caso foi investigado pela 3ª Delegacia de Atendimento ao Turista (Deatur) do Departamento de Operações Policiais Estratégicas (Dope). O inquérito policial foi relatado ao Poder Judiciário em outubro de 2024. Na mesma ocasião, o Ministério Público requisitou diligências complementares, que foram cumpridas e o procedimento encerrado em abril de 2025. Demais questionamentos devem ser solicitados à Justiça”.
Em nota, o Ministério Público Federal informou que “o procedimento de investigação sobre o falecimento de Evans Wusu continua em tramitação”.
Entenda a morte de Evans
Imigrante que morreu após passar mal no Aeroporto de SP tentou pedir ajuda e foi enterrado no Brasil sem autorização, diz família
Ao g1, uma prima de Evans, Priscilla Osei Wusu, explicou que ele chegou ao aeroporto em Guarulhos em 4 de agosto, depois de ter sido deportado do México em 2 de agosto. Segundo ela, o primo havia embarcado em Gana e deveria fazer uma cirurgia na coluna em território mexicano.
“Não sei o motivo de ele não ter conseguido entrar no México. Até o médico que deveria operá-lo conversou com a Imigração e pediu que o acompanhassem ao hospital. Nós até pagamos o hotel dele naquela noite. [Evans] voltou para São Paulo e ficou retido após pedir refúgio para ir a um hospital. Ele queria que as autoridades [brasileiras] o mandassem [de volta] para lá”, disse Priscilla.
A rota original previa que, após a cirurgia, Evans deveria pegar um voo que fizesse conexões no Brasil e no Catar antes de, finalmente, retornar a Gana. Mas, ao chegar a Guarulhos, ele decidiu tentar entrar em território brasileiro para ser encaminhado a um hospital daqui. Segundo a família, Evans disse que não teria condições de saúde para retornar ao seu país sem ser atendido antes.
Priscilla relata que, na segunda semana de agosto, ainda retido no terminal de Guarulhos, o primo passou a encaminhar mensagens a um tio informando que estava com muita dor e precisava ir ao hospital urgentemente. Ele afirmou também que só foi atendido após outros imigrantes terem se manifestado para que houvesse algum auxílio.
O g1 teve acesso a essas mensagens (veja abaixo). Em um áudio, Evans reclamou que estava sentindo dor e que não entendiam o que ele estava falando.
“Preciso urgentemente de sua ajuda. Estou com uma dor insuportável na coluna, viajei de Gana para o México para fazer uma cirurgia, mas infelizmente não fui internado, não sei o motivo. Estou humildemente solicitando uma cirurgia urgente na coluna aqui no Brasil, tenho dinheiro para pagar. Não posso viajar com segurança de volta para Gana por causa da minha condição”, afirmou ele.
E complementou: “Paguei por uma passagem de classe executiva de Gana para o México porque a econômica não era segura para mim. Meu retorno é em classe econômica porque sei que estarei forte e saudável após a cirurgia. Minha situação agora não me permitiria voar com segurança na econômica para Gana e minha dor está ficando insuportável. Por favor, me ajude a marcar uma consulta aqui no Brasil para minha cirurgia na coluna. Obrigado. É isso que devo apresentar a eles”.
A certidão de óbito de Evans, à qual o g1 teve acesso, aponta que o ganense morreu de infecção generalizada, após um quadro inicial de infecção urinária. Como endereço, aparece apenas “Aeroporto de Guarulhos”. Evans foi enterrado no Cemitério Necrópole do Campo Santo, que é municipal.
Mensagem enviada por imigrante Evans para a família
Arquivo Pessoal
Conforme o Ministério da Justiça e Segurança Pública, a morte do imigrante foi registrada em 13 de agosto no Hospital Geral de Guarulhos. No entanto, a família afirma que enterraram o corpo sem que eles fossem avisados.
“Como o hospital pode ter enterrado meu primo sem o consentimento da família? Como puderam fazer isso? Para nós, isso não é algo trivial. Nós temos que prestar uma homenagem aos mortos, é algo muito importante e sério em nossa cultura”, disse Priscilla, na época.
Vídeo mostra últimos momentos de Evans
Veja momento em que imigrante de Gana é atendido no Aeroporto de SP dias antes de morrer
Vídeos obtidos com exclusividade pela TV Globo e pelo g1 mostram o momento em que o imigrante foi atendido por uma equipe de saúde e levado a um hospital.
As imagens são de 11 de agosto. Nelas, é possível ver Evans sentado sem camisa na área restrita para imigrantes, quando funcionários da saúde chegam ao local e vão em sua direção (veja acima).
Um grupo de imigrantes, ao ver a equipe, fica ao redor dos profissionais e fala com eles, mas não é possível ouvir o que dizem. Na sequência, os funcionários colocam Evans em uma cadeira de rodas e saem da área restrita com ele.
O imigrante foi levado até o Hospital Geral de Guarulhos e morreu dois dias depois.
Evans Wusu recebendo atendimento médico no dia 11 de agosto no Aeroporto de SP
Reprodução
Questionada em setembro do ano passado se iria abrir apuração sobre as circunstâncias que se deram a morte de Evans, a GRU Airport, concessionária que administra o Aeroporto Internacional de São Paulo em Guarulhos, disse “que os passageiros que aguardam o processo de admissão no país pela Polícia Federal ficam sob os cuidados das Companhias Aéreas até a sua conclusão”.
Informou ainda, que, “no dia 11/08, a equipe de atendimento a urgências/emergências do Aeroporto, ao ser acionada, imediatamente providenciou atendimento e encaminhamento do passageiro ao Hospital Geral de Guarulhos”.
Na época, a companhia aérea Latam disse que “lamenta profundamente o ocorrido e se solidariza com os familiares de Evans Osei Wusu”.
“Em 11 de agosto de 2024, o passageiro passou mal e a LATAM solicitou atendimento ao serviço médico do aeroporto de Guarulhos. Posteriormente, acompanhou a remoção e a internação do passageiro no Hospital Geral de Guarulhos, e realizou o contato com as autoridades brasileiras responsáveis e autoridades de Gana no Brasil”, afirmou.
“Em Guarulhos, vale lembrar, a LATAM está oferecendo assistência aos passageiros que embarcaram em seus voos, desembarcaram no aeroporto para conexão e decidiram não continuar suas viagens para o destino final, solicitando refúgio no Brasil à Polícia Federal. Em paralelo, a companhia mantém diálogo permanente e continuará colaborando com as autoridades brasileiras. A LATAM reconhece o compromisso das autoridades brasileiras no atendimento de questões humanitárias e seu importante papel nos cenários local e internacional”, finaliza.
Inicialmente, a Prefeitura de Guarulhos disse à reportagem que não tinha informações sobre o caso. Já na segunda nota enviada ao g1, a gestão municipal informou que “atuou somente como contratada para realizar o sepultamento do sr. Evans Osei Wusu pelo Hospital Geral de Guarulhos, que é estadual”.
“Diante do estado de deterioração do corpo e da falta de retorno da família à respectiva embaixada, providenciou toda a documentação para o enterro, por sua vez liberado pelo IML, também sob responsabilidade do governo estadual”, afirmou o texto.
A Secretaria da Saúde estadual informou, também em nota, que “o Hospital Geral de Guarulhos, após constatar o óbito, comunicou às autoridades competentes, incluindo o Consulado e a Embaixada de Gana, para que a família do paciente fosse devidamente informada sobre o falecimento e orientada quanto aos procedimentos para o sepultamento”.
“No entanto, diante da ausência de resposta após 16 dias e com o corpo apresentando sinais de deterioração, o serviço funerário municipal foi acionado, e os procedimentos necessários para garantir um enterro digno ao paciente foram adotados.”
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