
Ter uma letra bonita — ou ser o autor de terríveis garranchos — está relacionado a fatores como genética, aprendizado, educação e cultura. Conheça os detalhes de pesquisas que avaliaram a forma que usamos nossas mãos para escrever. Fatores como genética e cultura influenciam no formato de nossas letras
Getty Images/via BBC
As décadas de receitas escritas à mão no consultório criaram uma fama que virou até expressão popular: letra de médico.
Os garranchos de muitos profissionais de saúde são tão indecifráveis que até motivaram a criação de leis em diversos Estados do Brasil para exigir receitas digitadas no computador — ou, pelo menos, numa caligrafia legível e sem abreviações.
✏️Mas o que explica o formato de nossa letra? E por que algumas pessoas têm uma caligrafia tão perfeita, enquanto outras parecem ser incapazes de escrever de uma maneira minimamente legível para os outros?
A antropóloga Monika Saini, professora do Departamento de Ciências Sociais do Instituto Nacional de Saúde e Bem-Estar da Família da Índia, lembra que escrever à mão exige muita coordenação entre os olhos e nossas habilidades motoras.
“Eu diria que a escrita é uma das mais complicadas habilidades desenvolvidas pelo ser humano”, diz a especialista ao programa de rádio CrowdScience, do Serviço Mundial da BBC.
O principal interesse acadêmico de Saini é entender os diferentes fatores que tornam a letra de cada um de nós única.
“A escrita depende de utensílios e de nossas mãos. E, quando pensamos nas mãos, falamos de algo muito delicado, composto de 27 ossos, que são controlados por mais de 40 músculos, a maioria deles localizados no braço e conectados com os dedos através de uma intrincada rede de tendões”, detalha ela.
Isso significa que a nossa caligrafia é influenciada em parte pela anatomia e pelas características genéticas que herdamos de nossos progenitores.
Ou seja: a altura, a forma como você se senta, o ângulo do caderno ou do papel, a firmeza da sua mão, ser destro ou canhoto… Tudo isso influencia no formato das letras e das palavras que você produz.
Mas há também uma influência cultural que não pode ser ignorada aqui. Afinal, aprendemos a segurar lápis e canetas em casa, na primeira infância, com o auxílio dos mais velhos.
A forma que eles costumam usar esses utensílios é passada adiante, quando a criança faz os seus primeiros traços.
Logo depois vem a escola — e uma nova leva de influências dos professores e dos colegas de sala de aula.
Com o passar dos anos, a tendência é que nossa letra continue a mudar. Até porque, após os anos de formação e aprendizado, muitos de nós passamos a escrever menos no dia a dia.
E a falta de hábito, somada à pressa do cotidiano, pode nos deixar menos cuidadosos com a forma que traçamos letras, sílabas, palavras, frases, parágrafos…
Também não dá pra ignorar aqui o papel das novas tecnologias, que nos fazem digitar mais do que escrever à mão.
Em uma de suas pesquisas, Saini quis entender melhor quais eram os fatores mais importantes por trás da caligrafia de um indivíduo.
Para isso, ela elaborou um texto simples, sobre mudanças climáticas, e pediu que um grupo de voluntários copiasse as frases, usando o estilo de escrita manual ao qual estavam acostumados.
Ao receber os manuscritos, a antropóloga pode avaliar elementos como o tamanho da letra, o formato de cada símbolo, o espaço entre as palavras ou o quanto a pessoa conseguia seguir linhas retas nos parágrafos.
“Com auxílio de programas de reconhecimento de imagens, foi possível comparar as escritas com o padrão que eu havia compartilhado anteriormente”, informa ela.
“Quando o pai ensina as habilidades de escrita para seu filho, existe uma alta probabilidade de encontrarmos alguma similaridade entre as duas caligrafias.”
“Mas a letra de uma pessoa também é influenciada pelo tempo de escola ou pelo estilo de um professor em particular”, pontua a pesquisadora.
📝O cérebro durante a escrita
A neurocientista Marieke Longcamp, da Universidade de Aix-Marselha, na França, estuda como somos capazes de escrever.
Para isso, ela usa aparelhos de ressonância magnética, que permitem visualizar em tempo real o cérebro de pessoas enquanto elas realizam certas atividades.
Numa dessas pesquisas, voluntários receberam um tablet capaz de gravar os movimentos da escrita à mão enquanto eram examinados.
Longcamp relata que foi possível observar a ativação de diversas partes do cérebro, que trabalham juntas para possibilitar o complexo ato de escrever.
“Regiões como o córtex pré-motor, o córtex motor primário e córtex parietal estão envolvidas no planejamento e no controle de gestos manuais”, detalha ela, ao CrowdScience.
“Há também influências de estruturas da base do cérebro, como o giro frontal, que está envolvido em aspectos da linguagem, e o giro fusiforme, que processa a linguagem escrita.”
“Uma outra estrutura fundamental aqui é o cerebelo, que coordena os movimentos e corrige nossos gestos”, complementa ela.
A neurocientista lembra que a caligrafia depende basicamente de dois sentidos: a visão e a propriocepção.
“A propriocepção leva em conta as informações que vêm dos músculos, da pele e do corpo todo. Isso tudo é codificado enquanto nós escrevemos”, explica ela.
📝Como a escrita influencia no aprendizado?
Nesse contexto, é curioso notar como a evolução da tecnologia pode influenciar a forma como compreendemos as informações.
Durante muitos séculos, a velha e boa escrita à mão era a única forma de tomar notas, estudar, memorizar e aprender diferentes coisas.
Mas essa realidade mudou radicalmente nos últimos anos, com a chegada de computadores, tablets e smartphones.
Hoje em dia, muitas pessoas mais novas aprendem a escrever com teclas e telas, e não mais com lápis, caneta e papel.
Será que essa transição tem algum impacto no aprendizado?
A professora de Psicologia e Neurociências Karin Harman James, da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, busca respostas para essa pergunta.
Ela estuda como as nossas mãos, e a forma como seguramos e manipulamos objetos, influenciam no desenvolvimento do cérebro e no jeito que aprendemos.
Segundo a especialista, há uma diferença em termos de funcionamento cerebral no ato de olhar uma letra, ou palavras, ou usar os sistemas motores do corpo para interagir com esses pedaços de informação escrita.
“Me interessei em entender como a interação de objetos com as nossas mãos permite ativar sistemas motores cerebrais”, explica ela, ao CrowdScience.
Num experimento, James recrutou crianças com quatro anos, que ainda não sabiam escrever.
Em laboratório, esses voluntários mirins aprenderam uma entre três coisas: a completar traços para formar uma letra, a digitar uma letra e a escrever uma letra.
Quando todas haviam cumprido a primeira parte da atividade, elas foram submetidas a uma ressonância magnética.
“Nós mostramos às crianças diferentes letras, enquanto o cérebro delas era escaneado. Nesse momento, elas só precisavam olhar as letras que aprenderam a fazer no laboratório”, descreve a neurocientista.
“Observamos que as crianças que aprenderam as letras por meio da escrita à mão tiveram uma ativação cerebral em áreas relacionadas a essas habilidades. Isso não aconteceu nos outros dois grupos, que completaram os traços ou digitaram”, compara ela.
Mas a relação entre a caligrafia e o aprendizado não para por aí.
Numa outra pesquisa, James avaliou estudantes universitários.
A tarefa deles era participar de uma aula sobre um assunto do qual eles não sabiam nada. Na sequência, eles preencheram um questionário sobre como tomaram nota do que o professor ensinou.
No dia seguinte, todos os voluntários fizeram uma prova, baseada no conteúdo que foi passado anteriormente.
“Nós comparamos os resultados dos estudantes que tomaram nota à mão, no computador ou escreveram num tablet”, diz a pesquisadora.
A neurocientista explica que, nas universidades americanas, é comum que professores compartilhem os slides com os alunos.
E uma parte dos estudantes adotou o hábito de abrir esse arquivo em tablets e fazer anotações à mão, com ajuda de canetas digitais, nos próprios slides.
“No nosso trabalho, estudantes que usaram o tablet e escreveram na tela se saíram melhor nos testes”, diz ela.
“Isso aconteceu provavelmente porque os alunos tinham não apenas o material original, nos slides, como podiam colocar suas próprias anotações diretamente ali, à mão.”
“Mas a escrita com caneta e papel também se mostrou benéfica. Os voluntários que usaram esse método se saíram melhor do que aqueles que digitaram as anotações no computador”, acrescenta a especialista.
Em outras palavras, segundo as evidências mais recentes, se você quer realmente aprender algo, a melhor coisa a fazer é escrever à mão — seja no papel ou num tablet.
📝É possível melhorar sua letra?
Mas esse debate todo nos leva à discussão do início da reportagem: será que autores de garranchos podem ter uma letra melhor, para melhorar a legibilidade e aprender melhor?
No programa CrowdScience, a instrutora de caligrafia Cherrell Avery, de Londres, no Reino Unido, compartilhou algumas dicas que podem ajudar.
A primeira orientação dela é “ir devagar”. Muitas vezes, escrevemos com muita pressa — e deixamos de prestar atenção no formato adequado das letras e das palavras.
Avery também pontua que é preciso entender o estilo de cada pessoa, até para saber qual o melhor utensílio de escrita, a forma de segurar a caneta/lápis, a postura adequada, o tipo de papel, entre outros fatores.
Segundo ela, é possível, sim, melhorar a caligrafia por meio de exercícios.
“É claro que uma única sessão de treinamento não é suficiente para obter mudanças significativas”, pondera ela.
Mas com um pouco de insistência, é possível criar uma “memória muscular” que propicia um novo estilo de escrita.
“No início, isso é um esforço consciente. Mas, aos poucos, se torna um hábito e você nem pensa mais sobre essa nova forma de escrever”, garante ela.
Por fim, Avery destaca que a escrita à mão ainda é importante para nós porque ela representa uma “extensão de nossa personalidade”.
“É como se deixássemos um pouco de nós mesmos naquela página.”
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