
Dois filmes indicados ao Oscar já usaram inteligência artificial na sua produção. Agora, uma empresa americana desenvolve ferramenta de IA para uso na indústria do cinema. Durante a greve de Hollywood em 2023, surgiram inúmeros cartazes criticando o uso da inteligência artificial no cinema e na TV
Getty Images via BBC
Em um mesmo estúdio antes usado por astros do cinema mudo como Charles Chaplin (1889-1977) e Mabel Normand (1892-1930), executivos de Hollywood, atores e cineastas se reúnem em uma festa regada a coquetéis.
Eles estão maravilhados com o que, para alguns, é o maior desenvolvimento do setor desde a criação do cinema falado: o vídeo gerado por inteligência artificial (IA).
A questão em debate é se a IA será o futuro ou o fim do cinema.
Apenas dois anos se passaram desde que a greve de atores e roteiristas paralisou Hollywood, exigindo proteção contra a IA.
Agora, a tecnologia vem se infiltrando na TV, no cinema e nos videogames, apesar das controvérsias. E dois filmes indicados ao Oscar já usaram inteligência artificial.
Um DJ toca hip hop dos anos 1990, enquanto desenvolvedores de informática disputam o espaço com atores e executivos – um sinal da mudança de poder no setor.
A IA em Hollywood é “inevitável”, segundo o cineasta Bryn Mooser, anfitrião da festa e um dos fundadores da companhia de software Moonvalley. A empresa criou a ferramenta de IA generativa Marey pagando por filmagens de cineastas com seu consentimento.
Para Mooser, a IA pode ainda soar como um palavrão, mas seu produto é “limpo” porque paga pelo seu conteúdo.
“Os artistas devem participar do processo”, afirma ele. Mooser destaca que é melhor construir a ferramenta para os cineastas do que ser “engolido pelas grandes empresas de tecnologia”.
Nesta semana, Hollywood deu a palavra final: filmes feitos com inteligência artificial podem concorrer – e ganhar – um Oscar.
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas emitiu as novas regras na segunda-feira (21/4), afirmando que o uso de IA e outras ferramentas digitais “não ajudará nem prejudicará as chances de obter uma indicação”.
Mas a Academia afirmou que ainda considerará o envolvimento humano ao selecionar seus vencedores.
Cineastas, atores e executivos de Hollywood marcaram presença na festa promovida pela nova empresa de produção de conteúdo com IA
Asteria via BBC
A Inteligência Artificial é retratada como vilã em Hollywood. No filme “O Exterminador do Futuro” (1984), por exemplo, a IA empregada pelos militares americanos decide destruir todas as pessoas da Terra.
Mas, na vida real, foram os criadores da IA, não a tecnologia em si, que receberam a maior parte das críticas. As empresas usam dados acessíveis ao público para construir seus modelos de IA, o que inclui material com direitos autorais compartilhado online. E os criadores afirmam que estão sendo prejudicados.
A OpenAI, Google e outras empresas de tecnologia enfrentam diversas ações judiciais de escritores, atores e organizações jornalísticas. Eles defendem que seu trabalho foi roubado para treinar IA sem o seu consentimento.
Os roteiristas pressionaram estúdios como a Paramount, Disney e Universal, que detêm os direitos autorais sobre filmes e programas de TV, a fazerem o mesmo. Mas nenhuma das empresas tomou medidas judiciais a este respeito.
“Todos nós lutamos muito pelas leis de direitos autorais e ninguém quer ver seu trabalho roubado para que outra pessoa lucre com ele”, afirma Mooser.
Hollywood já começou a brincar com a nova tecnologia. Os filmes “Emilia Pérez” e “O Brutalista”, indicados para o Oscar deste ano, usaram a IA para alterar as vozes dos atores.
Adrian Brody ganhou o prêmio de melhor ator pela sua atuação no papel principal de “O Brutalista”, mesmo com o auxílio da IA para corrigir seu sotaque nas cenas em que ele falava húngaro.
A IA já foi empregada até para rejuvenescer atores, como Tom Hanks e Harrison Ford.
A IA generativa foi usada para corrigir o sotaque de Adrian Brody ao falar húngaro em ‘O Brutalista’
Getty Images via BBC
Figurantes ‘na mira’
A tecnologia, aparentemente, está em toda parte.
No início deste mês, a OpenAI promoveu um festival de cinema com IA em Los Angeles, nos Estados Unidos. E os diretores da Marvel Joe e Anthony Russo revelaram ao The Wall Street Journal seus planos de investir US$ 400 milhões (cerca de R$ 2,3 bilhões) na criação de ferramentas de IA para os cineastas.
Mas os impactos sobre o futuro da indústria do entretenimento ainda são incertos.
A IA generativa, por exemplo, permite que os computadores aprendam e resolvam problemas de formas que podem parecer humanas, mas com muito mais rapidez. E muitos receiam que a tecnologia possa substituir seus empregos, com a IA sendo usada para gerar roteiros, animação, locações, vozes e atores humanos.
Se você perguntar ao ChatGPT, o popular chatbot da OpenAI, quais empregos em Hollywood são mais facilmente substituídos pela IA, os figurantes aparecem no topo da lista como os “mais vulneráveis”.
Já os “atores e diretores renomados” são considerados mais seguros porque “o poder do estrelato e o reconhecimento das marcas fazem com que o talento de primeira qualidade seja insubstituível”.
Na festa da Moonvalley, todos falavam sobre a nova tecnologia de IA, mas poucos desejavam falar com um repórter para gravar declarações.
Mesmo com chuva, dezenas de pessoas poderosas se dirigiram do oeste de Los Angeles até o badalado bairro de Silver Lake. Em Los Angeles, isso é algo notável.
“Estamos aqui para aprender”, disse um executivo que enfrentou uma hora de trânsito para ir até a festa. “Não estamos assinando nem comprando nada, mas estamos interessados.”
Mooser e o outro fundador da empresa, Naeem Talukdar, falam apaixonadamente sobre como a IA irá transformar Hollywood e permitir aos cineastas criar épicos campeões de bilheteria com orçamentos muito menores.
A tecnologia poderá gerar muitos filmes ruins, mas também pode ajudar a descobrir o próximo Quentin Tarantino ou Martin Scorsese, mesmo sem o apoio de um grande estúdio.
“Esta tecnologia é totalmente inútil sem o artista na posição central”, explica Talukdar. “A tecnologia precisa, em última análise, ser subserviente ao artista.”
Arnold Schwarzenegger interpretou uma IA assassina no filme ‘O Exterminador do Futuro’
Reprodução
A incursão de Hollywood no uso da IA surge ao mesmo tempo em que o governo Donald Trump prepara um novo plano para a inteligência artificial nos Estados Unidos.
As empresas de tecnologia afirmam que não podem competir com a China, seguindo as leis americanas de direitos autorais. E defendem que precisam ter acesso à arte sem restrições – desde Mickey Mouse até “Moana” e “Matrix” – para treinar seus modelos de IA, como questão de segurança nacional.
A OpenAI e a Google querem que o governo americano defina que a arte, filmes e programas de TV com direitos autorais sejam considerados fair use (“uso justo”) para treinamento de IA. O argumento é que, sem estas exceções, elas irão perder a corrida pela dominação para a China.
Para os cineastas de Hollywood, as companhias de tecnologia estão tentando prejudicar a indústria de entretenimento que, segundo eles, sustenta mais de 2,3 milhões de empregos nos Estados Unidos.
“Acreditamos totalmente que a liderança global dos Estados Unidos no setor de IA não deve se estabelecer à custa das nossas indústrias criativas essenciais”, escreveu um grupo de mais de 400 astros e estrelas de Hollywood, em carta aberta para o governo Trump.
O grupo é liderado pela atriz e roteirista Natasha Lyonne, que ajudou a desenvolver a Moonvalley. E a carta foi preparada em resposta à solicitação feita pelo próprio governo, em busca de comentários do público sobre seu Plano de Ação para a IA.
Seus signatários incluem nomes importantes como Ben Stiller, Paul McCartney, Cate Blanchett e a diretora Lilly Wachowsky – uma das criadoras da série Matrix, que ilustra uma realidade simulada distópica, na qual máquinas inteligentes escravizam os seres humanos.
Muitas pessoas em Hollywood ainda estão apavoradas com o que a IA pode significar para o seu futuro.
No início deste mês, uma manifestação reuniu dezenas de atores no lado de fora de um dos escritórios da Disney Character Voices. Eles protestaram contra as empresas de videogame, por se recusarem a entrar em um acordo sobre o emprego de IA na produção de jogos.
“O uso de atores reais é fundamental para grande parte do dramatismo e do prazer das pessoas ao jogar videogames”, segundo o ator DW McCann. “As pessoas vivenciam experiências que a IA simplesmente não consegue entender.”
Os atores querem um contrato que garanta que suas vozes e imagens não serão usadas sem seu consentimento para treinar modelos de IA que irão substituí-los no futuro.
Mooser defende que a IA irá permitir aos cineastas criar obras de arte maravilhosas, se for usada corretamente.
Ele afirma que, com seres humanos no comando, a IA poderá ajudá-los a criar cenários e mundos que não poderiam ser facilmente acessados ou inventados – e com muito mais rapidez do que os processos tradicionais, com computação gráfica e efeitos visuais.
“O que estamos tentando dizer é ‘veja, a tecnologia estará em tudo. Vamos nos certificar de tentar lutar ao máximo possível para que tudo seja feito corretamente e as grandes empresas não atropelem os artistas.'”
Assista ao trailer de ‘O brutalista’