
Depois de seis meses de conversas com diferentes entes federativos para chegar a um consenso em relação ao texto que vai tramitar no parlamento, o governo marcou um ato simbólico para o início do debate sobre a a PEC da Segurança, com a entrega do texto ao Congresso Nacional, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), nesta quarta-feira (23/4).
A entrega conta com a presença dos presidentes da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB); e do Senado Federal, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Além disso, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski; a ministra-chefe de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann; e líderes do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP); no Senado, Jaques Wagner (PT-BA); e na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE) participarão do ato.
No último dia 8 de abril, Lewandowski, juntamente com Gleisi Hoffmann, ministra de Relações Institucionais, apresentou a PEC à Câmara dos Deputados.
Em conversa com líderes partidários, foram colhidas impressões sobre o texto. Na ocasião, o presidente da Casa Baixa, Hugo Motta (Republicanos-PB), afirmou que há convergência e unanimidade entre os líderes quanto à urgência do tema. “A Câmara não faltará para dar a resposta que a sociedade nos cobra. Nós vamos dar o remédio que for preciso para enfrentar o tema, e essa será a pauta prioritária de nossa gestão”, disse.
A expectativa era que a matéria fosse encaminhada oficialmente ao Congresso na semana passada, mas, devido ao feriado de Páscoa, a proposição ainda não foi protocolada.
Com a volta dos parlamentares a Brasília, após os dias de pausa, a PEC vai ser entregue e deverá constar no sistema da Câmara.
Mesmo antes de ser protocolada, a PEC da Segurança tem movimentado os bastidores do Congresso Nacional.
O ministro Lewandowski e aliados do presidente Lula, têm articulado para conseguir apoio à proposta de emenda à Constituição que estabelece novas diretrizes e integra as forças de segurança do Brasil.
Apesar de ser consenso entre parlamentares a necessidade de tratar sobre o tema, o que favorece a tramitação da proposta, deputados e senadores apontam que o texto não deve ser aprovado sem passar por modificações.
Deputados e senadores ouvidos pelo Portal iG foram categóricos em afirmar que a segurança pública será tema central no parlamento nos próximos meses, mas que a proposta do governo encontra resistência, principalmente, entre os governantes dos estados e municípios brasileiros.
“A PEC já vinha enfrentando oposição mesmo antes de ser protocolada. Acredito que ela ande porque a segurança pública é uma preocupação de todo o Congresso. Mas terá mudanças, sem dúvidas”, comentou a senadora Margareth Buzetti (PSD-MT). Lewandowski deve se reunir com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), nos próximos dias para discutir a proposta.
Entenda a PEC da Segurança
A PEC pretende estabelecer diretrizes gerais quanto à política de segurança pública e defesa social, que incluirá o sistema penitenciário.
A proposta atualiza as competências da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), além de reconhecer na Constituição as guardas municipais como parte das forças de segurança. Ela ainda prevê a criação de corregedorias e ouvidorias autônomas.
A proposição também tem como objetivo conferir status constitucional ao Sistema Único de Segurança Pública (Susp), instituído em 2018, de forma a proporcionar maior integração entre a União e os entes federados na elaboração e execução da política de segurança pública.
Com isso, a PEC prevê o compartilhamento de informações de segurança entre os municípios, governos estaduais e federal, como parte da estratégia para combater o crime organizado e interestadual.
A PEC ainda inclui na Constituição o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, composto por representantes do governo federal, dos Estados e do Distrito Federal e dos municípios, além da sociedade civil.
O texto também constitucionaliza os fundos nacionais de Segurança Pública e Política Penitenciária e cria uma polícia ostensiva para a União (equivalente à PM no âmbito estadual).
Em relação a essas forças policiais da União, a PEC prevê a criação de uma judiciária, com vistas a atuar em ações de crimes ambientais e agir contra práticas cometidas por organizações criminosas e milícias privadas que tenham repercussão interestadual ou internacional e exijam repressão uniforme; e outra ostensiva, para realizar o policiamento em rodovias, ferrovias e hidrovias federais e prestar auxílio às forças de segurança dos demais entes federados quando requisitado.
Mesmo centralizando as competências e criando a polícia da União, a emenda deixa explícito no texto constitucional que as novas atribuições concedidas ao governo federal em relação à segurança pública não excluem as responsabilidades dos demais entes federados, ou seja, não retira poderes dos estados.
“É fundamental que as políticas públicas, como a segurança pública, tenham suas balizas protegidas na Constituição. É assim com a saúde, com a assistência social e com a educação. A PEC não interferirá na autonomia dos governadores e irá garantir uma integração maior entre as forças, o que é essencial para fazer frente ao crime organizado em todo o país”, assegurou a deputada Erika Kokay (PT-DF).
Governistas enxergam essas alterações propostas pela emenda como fundamentais para o avanço da segurança pública no país.
“Desde a Constituição de 88 a competência geral, de uma forma ampla, sobre a segurança pública é dos estados e isso não funciona mais tão bem hoje em dia, porque a realidade mudou ao longo dos anos. Passamos a ter outros desafios diferentes daquela época, por exemplo, o crime organizado e outros tipos de criminalidade que passaram a agir interestadualmente e até internacionalmente”, defendeu a deputada delegada Adriana Accorsi (PT-GO), em entrevista ao iG.
A parlamentar é uma das integrantes da base do governo na Câmara que acompanha de perto as discussões sobre a PEC, antes mesmo da proposta ser apresentada ao Congresso.
“Somente a União poderia ter a possibilidade de atuar em vários estados e também transnacionalmente. Portanto, essa mudança que a PEC propõe é fundamental para que a gente possa combater as novas formas de crimes”, argumentou.
Governadores apresentam resistência
A proposta de conferir mais poder à União nas decisões sobre a segurança pública não agradou os governadores.
A primeira versão do texto foi rejeitada pelos governantes estaduais, foi quando a matéria foi alterada e passou a incluir o dispositivo que deixa claro que as medidas propostas não retiram autonomia dos estados.
Mesmo assim, alguns governadores ainda apresentam resistência, em especial o chefe do Executivo de Goiás, Ronaldo Caiado (União).
A pauta da segurança pública é a principal do governador goiano e a possibilidade de perder parte do poder para decidir sobre essas questões não o agrada.
“Vejo com preocupação a proposta apresentada pelo governo. Trata-se de um modelo centralizador, que enfraquece o pacto federativo ao concentrar poderes na União sem assegurar recursos aos estados. Além disso, a proposta cria um sistema de segurança pública em que o Congresso Nacional é apenas consultivo, sem força deliberativa efetiva, o que enfraquece o controle democrático e o papel técnico do Legislativo sobre o tema”, ponderou o senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR).
Em relação a essas resistências, o ministro Lewandowski comentou que muitos gestores estaduais ainda agem como se estivessem à frente de “Estados soberanos”, e não de entes autônomos dentro de uma federação.
“Muitos governadores ainda pensam, talvez sob esse olhar da Constituição de 1891, que realmente os Estados membros da federação são Estados soberanos, quando na verdade não são. Eles são autônomos, dentro daquela autonomia que é prevista na Constituição Federal de 1988”, destacou, em evento para juristas organizado pelo grupo Prerrogativas, em São Paulo.
A crítica de Lewandowski foi direcionada também ao governador Romeu Zema (MG), que, junto com Caiado, lidera a oposição à PEC. Apesar disso, o governo garante ter apoio da maioria dos estados para seguir com a proposta.
“Houveram várias reuniões com os governadores, inclusive com a presença do presidente Lula. Sugestões que foram colocadas nessas reuniões foram incluídas na PEC, como a parte ressaltando que não serão retiradas atribuições dos estados, que foi o principal pedido dos governadores, e isso foi bem ressaltado na PEC.Porém, ainda vai haver todo o debate no Congresso Nacional e outras sugestões poderão ser incluídas”, contou a deputada Accorsi.
PEC alternativa
Para tentar impedir que o governo assuma o protagonismo nas pautas da segurança pública, a oposição no Congresso Nacional tem articulado o avanço de outra proposta, a PEC 3/2025.
De autoria do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR), a matéria visa alterar a Constituição Federal para dar ao Congresso a competência exclusiva de legislar sobre normas gerais de segurança pública, defesa social e sistema penitenciário, com a cooperação da União.
Isso significa que o Congresso teria a responsabilidade principal de criar leis sobre esses temas, enquanto a União atuaria de forma cooperativa. Diferente da PEC da Segurança, que atribui ao governo federal a competência principal de atuar em temas dessa natureza, a PEC 3/2025 aumenta o poder do legislativo, mas assegura a autonomia dos estados.
“A PEC 3/2025 corrige falhas da proposta do governo [PEC da Segurança] ao adotar uma lógica federativa e cooperativa. Enquanto o governo centraliza e impõe diretrizes da União às polícias estaduais, nossa proposta preserva a autonomia dos estados, valoriza as forças locais e garante controle democrático”, explicou o senador Mecias de Jesus, em entrevista ao iG.
O parlamentar assegura que a PEC 3/2025, de sua autoria, foi elaborada com base em uma escuta atenta às realidades dos estados e municípios. De acordo com o senador, essa proposta conta com ampla aceitação entre “parlamentares comprometidos com uma segurança pública eficiente, cooperativa e juridicamente segura”. “O que está em jogo é o modelo de segurança que o Brasil precisa: um sistema concentrado na União ou um que respeita as realidades locais. A PEC 3/2025 assegura a independência institucional das polícias, reforça o papel do Congresso e propõe uma política eficaz, que leve em conta as diferenças regionais do Brasil”, defendeu.
“A proposta fortalece a autonomia das polícias estaduais, evita a sobreposição de competências, impede a criação de forças paralelas e assegura que as decisões sejam tomadas com responsabilidade fiscal e técnica”, acrescentou Mecias de Jesus. A expectativa do senador é que essa PEC alternativa tenha uma aceitação maior e tenha uma tramitação mais ágil do que a proposta do governo.
“Diante do impasse gerado pela proposta centralizadora do governo, acredito que a PEC 3/2025 ganhará cada vez mais força no Congresso como uma alternativa sólida, moderna e respeitosa à Constituição. A receptividade entre os senadores tem sido positiva, e a expectativa é avançar com sua tramitação, construindo consensos para que a matéria seja votada com a urgência que o tema exige”, concluiu.
Articulação
Se de um lado a oposição tem articulado para que a PEC 3/2025 caminhe, de outro o governo está atuando para garantir que a PEC da Segurança tenha uma rápida aprovação.
Os ministros Lewandowski e Gleisi Hoffmann estão concentrando esforços nas conversas com os diferentes entes federativos, na intenção de conquistar o apoio necessário para a pauta avançar no Congresso.
Dentro do parlamento, deputados da base do governo também estão articulando para esclarecer os pontos focais da proposta e conseguir o apoio dos congressistas. “Nós esperamos aprová-la. Essa proposta vai dar condições para que a gente enfrente um tema que é um tema crucial hoje para a população brasileira e para o mundo, que vem avançando também em concepções de segurança pública mais modernas e mais articuladas. Eu acho que isso vai ser o suficiente para convencer o Congresso Nacional”, opinou o deputado Rogério Correia (PT-MG), um dos vice-líderes do governo na Câmara.
A deputada Adriana Accorsi, que tem se mobilizado e acompanhado de perto as discussões sobre a PEC da Segurança, também aposta na aprovação. “A PEC é fundamental nesse momento que nós passamos no país, é uma evolução da legislação e é necessária. Eu acredito que será aprovada. O clima para a aprovação está muito bom. O próprio presidente da Câmara já se comprometeu a pautar o debate da segurança pública, incluindo a PEC. Então eu acredito que será sim aprovada em breve”, disse.
Em relação à resistência que se levanta contra a PEC, os deputados governistas consideram que será facilmente derrubada. “Eu acho que a resistência que se encontra muitas vezes é uma resistência corporativa, de setores ligados aos governos estaduais, com receio de perder a iniciativa exclusiva do assunto, mas é bom ressaltar que não há nenhuma perda de autonomia”, opinou Correia.
“A proposta apresentada pelo governo veio precedida de uma série de discussões, inclusive com os governadores. E chega ao Parlamento para seguir sendo debatida”, assegurou a deputada Erika Kokay (PT-DF). “Tentar apresentar uma proposta, sem qualquer discussão anterior, apenas para alimentar suas bolhas e fazer oposição ao governo, é menosprezar a angústia da população, que busca resultados na segurança pública”, completou a parlamentar, em uma crítica à PEC Alternativa (3/2025).
Entretanto, para conquistar a oposição, parlamentares avaliam que o governo terá que aprimorar o diálogo com partidos contrários às ideologias da atual gestão e tentar uma aproximação maior com esses representantes políticos. “ O governo federal precisa se abrir mais ao diálogo, ouvir e respeitar o posicionamento de senadores e deputados. Existem temas que exigem do Planalto uma condução menos eleitoral e mais focada em respeitar o poder legislativo”, destacou o senador Mecias de Jesus.
Entraves na implementação
Mesmo se a PEC da Segurança vencer essas dificuldades que se impõem para sua aprovação, a implementação de um modelo de segurança pública centralizado pode ser uma realidade distante de se concretizar.
A proposta constitucionaliza o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que foi criado em 2018, por meio da Lei 13.675. O Susp prevê integrar as ações de segurança pública em nível federal, estadual e municipal, com o objetivo de melhorar a coordenação entre as forças de segurança, padronizar procedimentos e compartilhar informações.
Mesmo em vigor há quase sete anos, ainda não há um funcionamento efetivo da integração das forças de segurança da forma como o Susp propõe. Para isso, faltam mecanismos que proporcionem uma aplicação prática da medida. Para o ministro Lewandowski, a forma de garantir a eficácia do Susp é inserindo esse dispositivo na Constituição.
A PEC da Segurança não só constitucionaliza o sistema, mas modifica procedimentos. O modelo de segurança pública presente no Brasil permite que cada estado defina seu próprio método. Isso fez com que o país tenha, hoje, 27 certidões de antecedentes criminais distintas, além de boletins de ocorrência, mandados de prisão e carteiras de identidade estaduais diferentes.
Esse desencontro de procedimentos gerou um modelo em que possibilita a fuga de criminosos e uma maior impunidade.
“No Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, a polícia estadual não consegue combater o crime organizado. E as forças de segurança federais não tem atribuição, a não ser que haja um pedido de federalização, que é algo muito moroso, burocrático, e que não inclui, necessariamente, o compartilhamento de informações de segurança e de inteligência. Enquanto isso, a população sofre com a criminalidade”, defendeu a deputada delegada Adriana Accorsi.
“O governo tem batido na tecla de que hoje o Brasil tem 27 certidões de antecedentes criminais, 27 boletins de ocorrência diferentes e outros exemplos, que são verdade e dificultam o combate ao crime. Dessa forma, o sujeito consegue fugir de um estado para o outro para se livrar da polícia. A questão é: teremos condições de fazer isso virar realidade?”, questionou a senadora Margareth Buzetti.
“Eu sou autora do projeto, hoje lei, que cria um cadastro público com nomes de estupradores e pedófilos. Já se vão cinco meses desde a sanção da lei e até hoje não saiu do papel. Esse exemplo mostra como há propostas que funcionam no papel, mas, na prática, o Executivo tem dificuldade de tornar realidade”, ponderou a senadora. Ela se refere à Lei 15.035/2024, que permite a consulta pública do nome completo e do número de CPF das pessoas condenadas por crimes contra a dignidade sexual.
Ademais, parlamentares apontam que outras ações, para além da PEC, serão necessárias para um aprimoramento da segurança pública no país.
“A intenção de ter uma polícia que funcione em nível federal de forma ostensiva, a unificação das informações e documentos, e a melhora nas corregedorias são iniciativas importantes, mas acho que estão longe de resolver o problema. Precisamos de uma série de medidas que, juntas, possam nos ajudar a mudar a realidade da segurança pública, senão a médio, a longo prazo. A PEC é um caminho, mas sozinha não resolve o problema”, analisou Buzetti.
“A forma como o Ministério da Justiça propõe a reestruturação do sistema, sem buscar o devido consenso com as instituições essenciais à segurança do país, pode institucionalizar um conflito entre as forças de segurança, em vez de promover a integração e a cooperação. O governo, ao tentar centralizar o tema da segurança pública em um modelo verticalizado, perde a oportunidade de fortalecer um sistema articulado, plural e eficiente”, criticou o senador Mecias de Jesus.